Estávamos
cansados – nós e os cavalos – naquele entardecer vermelho no deserto próximo ao
Mar Morto. Atrás de nós um rastro de sangue “mouro” dava conta de que estávamos
levando “ao reino dos minaretes a paz na ponta dos aríetes, a conversão para os
infiéis”.
Os gritos
das mulheres e crianças esquartejadas perdia-se na fumaça negra das vilas pelo
caminho incendiadas. Éramos a elite dos soldados de Cristo a serviço dos reis,
cavaleiros consagrados diante do altar para levar a palavra de Deus na ponta da
espada.
Mas agora
estávamos cansados... nós e os cavalos. Apeamos em local inadequado;
descuidados, aquecemo-nos nas chamas da fogueira, sem atentar para a fumaça que
denunciava nosso paradeiro. Recordo-me que pesava-me os olhos da fadiga e que
alguns companheiros já cochilavam naquele acampamento improvisado à beira da
estrada. E não recordo mais nada...
Adormeci
sentado, escorado a uma pedra, ainda de elmo e malha de aço. O braço pendia
apoiado à espada que eu não teria tempo de empunhar novamente. Os inimigos caíram
sobre nós sorrateiros e meus irmãos mais ligeiros jogaram-se, ainda zonzos,
sobre o fio curvo das cimitarras.
Quis o
destino, talvez YHWH, que eu – e somente eu – sobrevivesse à investida dos
pardos, para implorar à morte sem ser atendido.
Tendo por
referência nossos próprios hábitos, aguardei ansioso o início dos suplícios reservados
aos inimigos capturados vivos. Mas estes nunca chegaram.
Surpreendentemente
fui tratado com respeito, a despeito de tudo que havia feito até ali para
aquele povo. Não fosse a espada ausente, nada me faltava e sequer se notava que
era prisioneiro daquela gente. Eu não sabia, apenas suspeitava, que a invasão
cristã continuava. Mas aquele labirinto de cavernas, aquela vila esculpida nas
pedras, apenas nos séculos vindouros seria encontrada.
Com eles
aprendi aramaico, hebraico e grego; não se comia nenhum tipo de animal e comer
exigia todo um ritual; não havia cores nas vestes e ninguém era dono de nada;
e, quando pretendiam oferendar a Deus alimentavam algum faminto, fosse homem ou
animal. Deus este que, por sinal, habitava tudo que não fosse arte humana, era
venerado em tudo que havia de natural.
Era um povo
sem nome; chamavam-lhes, os outros, de o “povo piedoso”, e também de nazarenos.
Um dia me
perguntaram por que eu ainda estava lá, se não pretendia voltar para a minha
terra, para junto dos meus. Respondi-lhes que havia sido capturado e feito
prisioneiro. E cada um que passava era chamado para me ouvir repetir o que
havia dito, e isto foi por todo um dia a
grande piada da aldeia, e todos riram.
Explicaram-me
que jamais nos atacaram. Apenas acercaram-se de nosso acampamento, devidamente
armados, o que era próprio daquele tempo em que estrangeiros andavam a dizimar
vilas inteiras por lá, e reagiram à reação dos cruzados recém despertos que se
jogaram sobre eles. Muito lhes custou ter matado aqueles seres. Disseram-me que
ali não se permitia espadas, mas que poderia reaver a minha assim que decidisse
retomar minha jornada.
Eu nunca
quis!
Ali
permaneci até o fim daquela e ainda outras tantas vidas. Até que nenhum deles
restou sobre a terra. Já não estavam mais submetidos aos ciclos da matéria. Foi
quando voltei a nascer entre os brancos: incialmente no Velho Continente, agora
aqui, no fim do fundo da América do Sul.
Do povo a
que escolhi pertencer não restam remanescentes. Mas há ainda a região, povos
irmãos, que vem sendo expulsos e dizimados como um dia eu também tentei fazer, por
soldados como eu fui, a serviço dos reis. Eu, há muitos séculos desertei e hoje
sirvo à uma outra Lei.
Lá onde
cheguei homem e me tornei menino; Lá onde desaprendi tudo que agora sei; Lá
onde morri antes de nascer, onde amei e me desenvolvi enquanto Ser, hoje é lar
de um povo que eu muito estimo: YHWH abençoe a resistência do povo de Alah; Luz
e Força ao povo palestino!